Mais pontual do que normalmente, os estudantes chegam nesta manhã no auditório da Escola Técnica Maria Eduarda Ramos de Barros em Carpina. Já são 10 horas e para a tarde foi marcada uma prova, para a qual precisa se preparer ainda bastante. As férias começam este ano algumas semanas mais cedo por conta da Copa Mundial de Futebol, e portanto, as provas para o final do ano escolar foram também adiantadas.
Ao entrar na sala, os estudantes se empurram e procuram seus lugares. Nas paredes ao lado direito e esquerdo foram instalados 30 murais com fotos, textos, citados de testemunhas da época, que lembram à repressão e à violência no tempo da ditadura militar. A exposição “Anistia e Democracia” foi montada há duas semanas atrás na escola. Durante 15 dias, os estudantes tiveram tempo para aprofundar o tema com os seus professores de história.
Hoje Chico de Assis e Amparo Almeida Araújo foram convidados para falar e discutir com os estudantes. Ambos eram ativistas de grupos de resistência da esquerda durante a ditadura militar. “De que maneira vocês foram torturados?” perguntam os jovens entre 14-17 anos. “Como vocês conseguiram dinheiro? Em que vocês acreditaram?” Com muita eloquência e muitos detalhes, as duas testemunhas contam do dia-a-dia na resistência, da solidão na clandestinidade, das suas convicções, do seu tempo na prisão e sob a tortura. ” Hoje, vocês fariam a mesma coisa outra vez?” pergunta um jovem no final do evento, e sem hesitar, Chico de Assis e Amparo Araújo respondem uníssono: “Sim, sem dúvida alguma”.
A Escola em Carpina é uma das 20 escolas públicas em Pernambuco, que foram atendidas pela Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, desde o início do projeto em 2013. Irageu Fonseca, Assessor para a Memória Política e Alberto Vinicius, Coordenador de Projeto e antigo preso político, são os responsáveis pelo projeto e acompanham os eventos de abertura e finais.
“Muitos brasileiros acreditam que os jovens hoje não se interessam por história e política. Não é verdade. Os nossos atendimentos nas escolas provam o contrário,” critica Irageu Fonseca. “Porém, tem que facilitar o acesso dos estudantes a estes conhecimentos, eles precisam ser sensibilizados de uma forma apropriada para o assunto. Nós espertamos a sua curiosidade com fotos e com as histórias pessoais das testemunhas daquela época. Foi um sucesso!”
Chico de Assis, Amparo Almeida Araújo e as outras testemunhas da época participam voluntariamente do projeto e assumem também todas as despesas com combustível, alojamento e alimentação. “Considero este projeto muito importante, porque foi iniciado pelo poder público. Isso confere um significado mais importante ao assunto. Além disso, nos conseguimos alcançar pessoas em todas as regiões do Estado e assim, contribuimos com que as novas gerações saibam mais sobre a nossa história”, diz Amparo Almeida Araújo. Ela, hoje com 64 anos, era ativista durante dez anos na resistência. O seu marido foi assassinado pelos militares, seu irmão foi torturado e é considerado, até hoje, “desaparecido”. “É um intercâmbio: Quando falo com os jovens, a minha esperança cresce de que eles continuarem a nossa luta pela homenagem e pela memória desta parte da história. Que eles se engajem pelo esclarecimento dos crimes, e mantenham e fortalecerem a cultura do “Nunca Mais” em nosso país. Para que nunca mais se repitam as barbaridades da ditadura militar.”
O projeto da Secretaria de Direitos Humanos é inédito no Brasil, e Pernambuco se tornou mais uma vez pioneiro. “Mais uma vez”, porque quando foi instalada a Comissão Nacional de Verdade, Pernambuco convocou a primeira Comissão Regional de Verdade. O primeiro memorial em homenagem às vítimas da ditadura militar foi instalada também em Recife, capital do Estado.
Pernambuco era um dos centros da resistência política e social contra a ditadura militar. Os opositores do regime, seguidores dos movimentos estudantís e membros das associações de camponeses se tornaram alvo da repressão brutal do Estado. Hoje, presume-se que 51 pessoas foram assassinadas em Pernambuco por motivos políticos. Pelo menos 86 trabalhadores rurais e pequenos agricultores foram mortos. Dados exatos sobre as vítimas das comunidades indígenas não existem, igual ao resto do país.
As organizações não-governamentais, os movimentos sociais e ativistas independentes se engajaram há décadas a favor do resgate destas violações dos direitos humanos. ONGs como “Tortura Nunca Mais” e o Centro Cultural Manoel Lisboa trabalham com a reconstrução das causas dos mortes e os esclarecimentos dos casos de tortura e “desaparecimento”. Elas apóiam psiciologicamente os familiares dos mortos e ajudam na solicitação de indenização. Elas mantém a memória coletiva das vítimas dos militares viva e se engajam pela instalação de memoriais.
Em junho de 2012, foi criada a comissão de verdade e de memória Dom Helder Câmara em Recife. A comissão tem como missão de esclarecer os fatos e as circunstâncias de graves violações de direitos humanos, que aconteceram durante a ditadura em Pernambuco ou fora do Estado com os seus cidadões. Com nove membros e um mandato que foi prorrogado em abril de 2014 de dois para quatro anos, a comissão têm condições muito mais favoráveis do que a Comissão Nacional de Verdade, que conta com 7 membros e que vai ter que apresentar o seu relatório final após dois anos e meio apenas, no final de 2014. Além disso, o fato que a sociedade civil e, portanto, as ONGs e os familiares de vítimas mortos ou “desaparecidas” da resistência, foram integradas no desenvolvimento do Estatuto para a fundação da Comissão de Verdade e seus depoimentos ouvidos, é algo específico em Pernambuco. A sociedade civil não apenas estabeleceu os critérios para a seleção dos membros da comissão, mas também determinou os nomes de três membros.

Pressekonferenz der Wahrheitskommission von Pernambuco / conferência de imprensa da comissão de verdade
A Comissão de Verdade de Pernambuco, como o seu modelo a nível nacional, contribuiu desde já, a uma “oficialização” dos crimes da ditadura. Aonde ativistas e combatentes da resistência reclamaram muito justamente da falta de competência jurídica das Comissões, existem hoje muitas pessoas que já ouviram falar do trabalho e dos objetivos das comissões, mesmo se elas ou pessoas do seu âmbito nunca foram atingidas pelas repressões de então. Isto significa um primeiro passo importante rumo a um consenso da sociedade de que os crimes dos militares foram, de fato, graves violações sistemáticas dos direitos humanos e não apenas “exepções” isoladas de determinados sadistas, que atingiram apenas aquelas poucas pessoas, que se opuseram ao Estado.
É previsível que as comissões oficiais de verdade no Brasil não consiguerão o regate completo histórico e – principalmente – jurídico de 21 anos de ditadura militar no Brasil. Mas elas conseguem abrir o caminho para a maioria da sociedade brasileira no sentido de assumir a luta para o resgate histórico e a punição dos responsáveis e apoiar os ativistas e as organizações, que lutam há décadas para estes objetivos.
Isto revela-se mais importante ainda, uma vez que não se trata apenas de contar a história daquela época do ponto de vista da resistência política. Muitos brasileiros, que não participaram ativamente da resistência, perderam por razões políticas o seu emprego ou uma vaga na universidade, foram forçadas a partir para o exílio e abandonar as suas famílias. Sem falar dos milhares de vítimas entre os trabalhadores rurais e das comunidades indígenas, sobre as quais não existem dados exatos. As vítimas e seus familiares de ambos os grupos receberam, até hoje, apenas em casos excepcionais uma indenização do Estado, porque o pagamento é vinculado ao reconhecimento enquanto “perseguido político”. Afinal, uma grande parte da sociedade civil brasileira apoiou os militares. Tudo isto precisa ser históricamente pesquisado e resgatado, para garantir uma historiagrafia nacional, baseada em fatos, daquela época e para poder repassá-la às futuras gerações.
Os estudantes em Carpina se referiram, durante a discussão e nas entrevistas posteriores, sempre aos “mitos” lançados no Brasil, principalmente pelos círculos conservadores e militares, que embelezam o tempo da ditadura militar posteriormente como uma ditadura branda (,ditabranda’).
“Gostei do projeto, porque deixa mais claro por quê mal se fala hoje sobre o assunto. Ele acaba com diversos mitos e ajuda a compreender melhor o que aconteceu na época, “ disse Natália de 17 anos. E Carlos, da mesma idade, acrescenta: “As testemunhas não apenas nos conscientizaram sobre o nosso passado. Elas nos encorajaram a lutar por nossa democracia e, quem sabe, impedir um dia, que algo parecido aconteça outra vez. ”
Tradução: Cornelia Parisius
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