Pela memória, verdade e justiça

 O trabalho de apuração da ditadura brasileira pela sociedade civil no exemplo do Estado de Pernambuco

Em dezembro de 2014, com a entrega do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, o Governo Brasileiro assumiu pela primeira vez ampla responsabilidade pelas enormes violações dos direitos humanos que aconteceram durante a ditadura militar (1964—1985). Antes disso, a sociedade civil era quem principalmente trabalhava na apuração histórica e no trabalho de memória e se empenhava na execução jurídica dos responsáveis. Por isso, a admissão oficial da verdade é um passo importante, e já há muito esperado, para o Brasil.

No entanto, a longa lista de recomendações de medidas governamentais necessárias para a apuração da verdade e democratização e a frustração e a impotência da Comissão frente ao sigilo dos arquivos militares mostram que talvez esse processo esteja apenas começando. O trabalho da opinião pública hoje é mais importante que nunca, não apenas para transformar as descobertas do relatório em oportunidades genuínas, mas também para nos lembrarmos das questões em aberto e lutar para que a verdade não continue sendo mais uma garantia para os criminosos.

“É fácil dizer que devemos esquecer tudo em nome da conciliação nacional, enquanto existem tantas famílias que buscam seus filhos sem saber se estão vivos ou onde estão, se estão mortos e em quais cemitérios foram enterrados. Não queremos vingança, mas sim justiça.” Rosalina Santa Cruz, cujo irmão, Fernando, foi preso em 1974 e desde então está “desaparecido”.

National Truth Commission hands over final report to President Dilma Rousseff

National Truth Commission hands over final report to President Dilma Rousseff

Introdução

Em delegacias e hospitais, em câmaras de torturas e nas “casas da morte”, a polícia secreta nos anos da ditadura brasileira torturaram no mínimo 1.843 pessoas, que ela identificou como inimigas da “segurança nacional” por suas convicções políticas. Segundo as investigações da Comissão, 434 homens e mulheres foram mortos, 243 deles até hoje considerados “desaparecidos”. Via de regra, eram detidos, torturados e assassinados, e os cadáveres eram enterrados como anônimos em locais desconhecidos. Todos esses crimes estão meticulosamente documentados nos arquivos dos militares responsáveis por grande parte dos crimes. No entanto, esses arquivos continuam até hoje fechados ao público. Além disso, no norte e no nordeste do país, milhares de camponeses e pequenos agricultores foram mortos por motivos ideológicos ou em conflitos de terras. Povos indígenas inteiros foram escravizados, outros totalmente extintos, pois ficavam no caminho de interesses econômicos privados ou governamentais, e quase não há registros por escrito desses acontecimentos.

Porém, a Lei de Anistia de 28 de agosto de 1979 ainda garante impunidade aos criminosos. Desde essa época, parentes, advogados e organizações de direitos humanos tentam, sem sucesso, suspender juridicamente essa lei. Também a Ordem dos Advogados do Brasil deu entrada no Tribunal Superior Federal a um pedido de avaliação da constitucionalidade da lei e de suspensão da anistia para pessoas que cometeram crimes como assassinato, estupro e outros atos de violência. O pedido foi novamente indeferido no ano de 2012, embora pouco antes a Corte Interamericana de Direitos Humanos tivesse declarado a lei inválida, pois crimes contra a humanidade sempre são puníveis, onde quer que ocorram.

Diferente dos regimes militares em países como Chile (1973–1990) e Argentina (1976–1983), nos quais dezenas de milhares de pessoas foram diretamente afetadas pela violência do Estado como vítimas ou parentes destas, o aparato repressivo brasileiro procedia, em comparação, específica e sistematicamente contra pequenos grupos, em sua maioria formados por homens e mulheres jovens que defendiam ideais socialistas ou comunistas, o que não afetava diretamente a vida de muitos brasileiros. Ao mesmo tempo, a conservadora classe “dominante” considerava as ideias social-revolucionárias no contexto da Guerra Fria uma ameaça à ordem social existente e justificável a violência estatal contra os “terroristas de esquerda”. Então, os crimes de décadas eram ignorados e apenas apurados com hesitação tanto pela ampla opinião publica como também pelos governos civis.

Parkhaus des 4. Armeekorps, ehem. DOI-CODI in Recife / Edifício Garagem do 4° Exército, Ex-DOI-CODI no Recife

Parking Garage on site of former Torture Center DOI-CODI in Recife

Já nos últimos anos da ditadura, a resistência se movimentava: projetos e grupos da sociedade civil organizavam-se para apurar as violações aos direitos humanos. Nesse momento, eles não se preocupavam apenas com o esclarecimento, trazendo a público as torturas e seus responsáveis, mas também acompanhavam e apoiavam as vítimas. Reconstruíam em detalhe as circunstâncias dos sequestros e torturas e tentavam amenizar o sofrimento dos remanescentes traumatizados e lhes dar uma certeza sobre o paradeiro dos “desaparecidos”. Porém, muitos casos não puderam ser esclarecidos definitivamente, cadáveres não puderam ser encontrados ou sequer enterrados. Com frequência, os últimos indícios eram declarações de amigos e aliados políticos das vítimas, que estavam presentes no momento do sequestro ou podiam relatar os últimos sinais de vida daquelas na prisão.

Apenas em meados da década de 1990, o Estado começou, de forma hesitante, a responder a algumas exigências da sociedade civil – entre outros, através da criação das Comissões de Reparação. Quando finalmente, no ano de 2009, foi apresentado o projeto de lei para uma Comissão Nacional da Verdade, cresceu a esperança de que uma comissão estatal legítima conseguiria romper com o silêncio dos militares.

No entanto, eles provaram que, mesmo após 25 anos do final da ditadura, continuavam politicamente poderosos: o ministro da defesa e os líderes das forças armadas obrigaram o então presidente Lula da Silva, com ameaças de renúncia, a enfraquecer o mandato da comissão. Para evitar o foco sobre crimes de Estado por militares, o período de investigação originalmente previsto (1964—1985) foi ampliado em mais 40 anos (1946—1988) e excluída a formulação das violações dos direitos humanos “no contexto da repressão política”. Porém, acima de tudo, a Comissão foi incumbida apenas de realizar as investigações, ficando explicitamente vedada a condução dos processos criminais.

Ainda assim, após seu estabelecimento, em maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade concentrou seu trabalho na repressão política dos anos da ditadora. No entanto fracassou pelo bloqueio dos militares, que propositalmente ocultavam arquivos e provas e silenciavam em audiências públicas. Os poucos oficiais que de fato testemunharam na Comissão dissertavam orgulhosamente e diante das câmeras ligadas sobre seus crimes brutais e, ao mesmo tempo, calavam-se sobre provas concretas que poderiam ter contribuído para a descoberta da verdade.

Colonel Paulo Malhães at his Hearing by the National Truth Commission, March 2014

Colonel Paulo Malhães at his Hearing by the National Truth Commission, March 2014

A Comissão conseguiu esclarecer em seus dois anos e meio de mandato apenas um único caso de “desaparecimento”. (Com base em investigações da Comissão, os restos mortais de Epaminondas Gomes de Oliveira foram exumados em 24.9.2013, identificados e entregues à família.) Um sinal desanimador para o movimento de apuração brasileiro e, especialmente, para muitas comissões da verdade governamentais e não governamentais que foram fundadas segundo o modelo nacional em alguns Estados e em instituições, como universidades e sindicados — inclusive em Pernambuco.

O trabalho de apuração pela sociedade civil em Pernambuco

Pernambuco era um dos centros de resistência contra a ditatura brasileira e, por isso, também um dos grandes alvos da repressão do Estado. A oposição política e integrantes dos movimentos estudantis, membros das associações campesinas e até mesmo o então governador Miguel Arraes opuseram-se aos golpistas em 1964. Muitos pagaram com a vida pela coragem, foram torturados, presos ou precisaram deixar o país. Outros foram para o submundo e ingressaram nos diversos grupos de resistência armados ou não violentos. A comissão regional da verdade à época alega que, no mínimo, 51 pessoas foram mortas por motivos políticos. Um relatório oficial registra no mínimo 86 camponeses e pequenos agricultores assassinados. Desde meados da década de 1980, organizações não governamentais, instituições privadas e ativistas independentes em Pernambuco trabalham na apuração desses crimes da ditadura e seu reconhecimento pelo Estado. Com base no papel especial do Estado na resistência contra a ditadura, órgãos do governo pernambucano participam hoje mais ativamente do que em muitas outras regiões na apuração e buscam apoio da sociedade civil.

Tortura Nunca Mais Pernambuco.

No ano de 1984, surgiu no Rio de Janeiro o primeiro grupo Tortura Nunca Mais. Nos anos seguintes, ex-combatentes da resistências em todo o país fundaram outros grupos, que levavam o mesmo nome e perseguiam os mesmos objetivos, como também aconteceu em 1986, em Pernambuco. No início, como muitos outros grupos, o Tortura Nunca Mais Pernambuco apoiou principalmente as famílias das vítimas, publicando listas com o nome das pessoas que foram mortas ou sequestradas pelo regime, reconstruindo as circunstâncias desses crimes para que os parentes pudessem fazer valer seu direito à reparação.

O Tortura Nunca Mais também tinha como missão denunciar publicamente instituições estatais e pessoas públicas responsáveis pelas torturas e provocar mobilizações para o fechamento de órgãos e a exoneração de funcionários públicos. Durante os últimos anos da ditatura e na fase de transição para a democracia, esse era um esforço que tinha seus riscos. O grupo em Pernambuco conseguiu que fosse fechada, entre outros, a central regional do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), que durante a ditadura foi responsável por várias violações de direitos humanos. Os prontuários e órgãos estão à disposição do grande público desde 1991 pela pressão da sociedade civil. Em 1993, ativistas levaram a público provas de torturas pelas mãos de Roberto de Araújo Porto, que pouco antes havia sido nomeado diretor da Polícia Federal. Com base nessas acusações, Porto foi exonerado de seu cargo.

Memorial

Memorial “Tortura Nunca Mais”, Recife

O Tortura Nunca Mais criou o símbolo mais visível de sua luta incansável com o memorial homônimo, que foi o primeiro monumento dedicado à memória das vítimas da ditadura no Brasil.

Centro Cultural Manoel Lisboa. Batizado com o nome do mais importante fundador e líder do Partido Comunista Revolucionário, o Centro Cultural Manoel Lisboa relembra os membros do partido que eram ativos na resistência contra a ditatura ou foram suas vítimas. Uma preocupação principal do centro é a localização de restos mortais dos “desaparecidos”, como do próprio Manoel Lisboa e de Emanuel Bezerra dos Santos.

Os dois homens foram presos no verão de 1973 pelos agentes do aparato repressor e torturados brutalmente até a morte. Os militares responsáveis divulgaram na imprensa que os dois teriam morrido em uma troca de tiros com oficiais. Seus cadáveres continuavam “desaparecidos”. Desde os anos de 1980, os funcionários do Centro Cultural, com ajuda de testemunhas oculares e prontuários militares secretos do arquivo do DOPS em Recife, reconstruíram a verdade sobre o crime, e com sucesso: em 1991, os cadáveres de Lisboa e Bezerra puderam ser exumados de uma vala comum em São Paulo, identificados e entregues às famílias.

Projeto do Memorial Engenho Galiléia. Os ativistas Anacleto Julião e José da Silva lembram do antigo Engenho Galiléia, a cerca de 50 quilômetros a oeste de Recife, como centro da luta das ligas camponesas: as associações de camponeses lutavam desde 1955 pelos direitos dos agricultores e camponeses que à época viviam em extrema pobreza e estavam entregues ao domínio feudalista dos latifundiários. Com base nessa atividades, as ligas foram destruídas pelos militares já no golpe de 1964, mas principalmente pelos latifundiários e suas milícias particulares, os chamados capangas, e muitos dos membros das ligas torturados e assassinados.

Nos 500 hectares do Engenho Galiléia, local de fundação da primeira liga camponesa, os ativistas administram uma pequena biblioteca, na qual livros, antigos recortes de jornal, fotos e outros documentos e objetos trazem informações sobre o surgimento e a luta das ligas camponesas. Eles acompanham estudantes de escolas e universidades em visitas pelo local histórico e compartilham informações com cientistas e jornalistas que pesquisam sobre o tema.

Na Casa da Farinha, antigo depósito onde os camponeses da Galiléia se reuniam no passado, há uma placa desde abril de 2013 em memória à fundação de um memória das ligas camponesas e de Francisco Julião, um de seus líderes. Além da biblioteca, ela deve abrigar um memorial e um auditório para conferências e estudos acadêmicos. No entanto, por motivos financeiros, não há previsão para a realização do projeto.

Enquanto a apuração da resistência político-partidária e de sua perseguição está ao menos no caminho, o esclarecimento dos crimes no país ainda é muito incipiente, o que se deve principalmente à falta de documentação escrita sobre os crimes dos latifundiários e de seus capangas, ao contrário das violações dos direitos humanos perpetradas pelos militares.

Engenho Galiléia: Casa da Farinha

Ao mesmo tempo, tanto a apuração dos crimes da ditadura contra a população como também contra os povos indígenas tem uma força política especialmente explosiva: ela comprovaria oficialmente que, junto com latifundiários, colonos e empresários, grupos civis participaram do golpe e da ditadura e colaboraram com os militares. Uma verdade incômoda num país em que as estruturas de poder feudais fizeram perdurar a ditatura em muitas regiões e determinavam como antes a política e o dia a dia.

GAJOP. Muitos problemas atuais dos direitos humanos, como a violência policial excessiva e a impunidade, têm sua origem nas estruturas autoritárias e violentas que foram estabelecidas durante a ditadura e se mantiveram na transição democrática. O GAJO P (Gabinete de Assessoria Jurídica para O rganizações Populares), fundado em Recife em 1981, especializou-se nesses problemas.

Violações dos direitos humanos por forças de segurança governamentais e políticas e também crimes de empresários e latifundiários que garantem seus interesses ilegalmente não costumam ser investigados, processados e punidos de forma ampla e independente no Brasil. Os criminosos permanecem impunes, pois os afetados não têm informações suficientes sobre seus direitos ou não podem custear os processos caríssimos. Sentenças são executadas, quando muito, de forma deficitária. E, enquanto o Estado nega às vítimas e a seus parentes a justiça, estes ficam à mercê de mais violência e arbitrariedades. O GAJOP acompanha e assessora esses casos no âmbito jurídico e impetram, quando um caso corre por todas as instâncias judiciais nacionais, uma petição para que ele possa ser apresentado à Corte Interamericana dos Direitos Humanos.

Instituto Miguel Arraes. O Instituto Miguel Arraes, em Recife, preserva a memória do ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, que foi preso durante o golpe porque se negou a renunciar. Ele passou mais de um ano a prisão, foi exilado e voltou para Pernambuco somente depois de ser anistiado, em 1979. Nos anos de 1987 a 1990 e de 1995 a 1999, ele foi novamente governador do Estado. A resistência do ex-governador contra a ditatura influencia a autoimagem dos pernambucanos e de seus governos até os dias de hoje. A apuração crítica da ditatura também é relativamente aceita na maioria da sociedade não afetada por ela diretamente, e o Instituto alcança um público bastante amplo com seu trabalho de memória: uma base importante para o trabalho de todas as organizações que se empenhem para o reconhecimento das vítimas menos conhecidas na população ou nas comunidades indígenas.

Além disso, atores da sociedade civil cooperam com os órgãos do Estado no contexto de projetos específicos no trabalho da memória. Por exemplo, os Projetos de História nas Escolas, organizados pela Secretaria dos Direitos Humanos, são conduzidos por testemunhas voluntárias da ditadura. Outro exemplo de cooperação entre órgãos públicos e a sociedade civil foi a criação da lei para constituição de uma comissão da verdade regional, e o governo do Estado foi assessorado pelo Comitê Estadual pela Memória, Verdade e Justiça de Pernambuco para sua formulação. A própria Comissão foi constituída em junho de 2012 por Eduardo Campos, ex-governador e neto de Miguel Arraes.

Comitê pela Memória, Verdade e Justiça de Pernambuco. No ano de 2011, o Tortura Nunca Mais Pernambuco, o GAJO P e o Centro Cultural Manoel Lisboa, juntamente com ativistas como Anacleto Julião e os parentes dos “desaparecidos”, fundaram o Comitê pela Memória, Verdade e Justiça de Pernambuco. Sob o lema “Lutar, sempre. Desistir, nunca”, eles discutem os acontecimentos atuais nas apurações em Pernambuco e trocam experiências sobre seus projetos. Unindo forças, seu objetivo é o de sensibilizar e mobilizar tanto o público mais amplo como também representantes políticos para a necessidade de uma apuração histórica e jurídica da ditadura.

Nesse contexto, o Comitê também realizou alguns projetos conjuntos. No ano de 2012, em cooperação com a prefeitura de Recife, foram instaladas placas em uma série de praças que as identificavam como pontos de memória e explicavam quem havia sido vitimado naquele local e em que momento por um crime ditatorial. No âmbito de uma ação de rua, ativistas dedicaram-se no mesmo ano a rebatizar um viaduto em Recife com o nome de Padre Henrique Pereira, um representante da resistência católica, em vez de General Emílio Garrastazu Médici (presidente da ditadura entre 1969—1974). Na última semana de agosto, o Comitê organiza anualmente eventos e ações que informam sobre a lei da anistia e suas consequências jurídicas.

A contribuição política mais significativa para a apuração dos crimes da ditadura foi dada pelo Comitê pouco depois de sua instalação, quando o governo do Estado em exercício em 2011, também ele recém-empossado, solicitou informações para uma lei de criação de uma comissão da verdade regional, que deveria investigar as violações de direitos humanos que foram perpetradas entre 1946 e 1988 contra Pernambuco e os pernambucanos.

Press conference of the Regional truth commission Dom Hélder Câmara, 27/05/14

Press conference of the Regional truth commission Dom Hélder Câmara, 27/05/14

Começando pelas estruturas que a lei já sancionada à época para a Comissão Nacional da Verdade, o Comitê introduziu algumas novidades. Assim, o número de membros da Comissão foi aumentado de sete para nove e definido que no mínimo dois terços deles deveriam ser determinados pela sociedade civil. Os três membros restantes da comissão seriam nomeados pelo Estado. Além disso, a comissão tinha o dever de cooperar e trocar informações com instituições governamentais, entre outras, a Comissão Nacional da Verdade, e não governamentais, entre elas o Comitê.

A avaliação intermediária da Comissão Estadual pela Memória e Verdade Dom Hélder Câmara, instalada em junho de 2012, ainda avança timidamente, como seu equivalente em nível nacional. As pesquisas e publicações até agora quase não trouxeram à tona novos fatos. Na maioria dos casos, os militares responsáveis nem sequer foram intimados, e justamente ali, onde a população foi mais atingida com repressões das mais intensas pela ditadura, as declarações orais de testemunhas tiveram apenas pouco peso, e a falta de provas documentadas foi praticamente abafada. A Comissão de Pernambuco ainda tem tempo, até junho de 2016, para explorar o espaço de manobra de seu mandato e aprender com as experiências da Comissão Nacional da Verdade.

UMA OPORTUNIDADE PARA APURAÇÃO E JUSTIÇA?

Não cabe apenas às Comissões Estaduais da Verdade mostrar se o relatório final da Comissão Nacional da Verdade representará um avanço significativo para a apuração dos crimes da ditadura brasileira. Elas são instrumentos importantes para a reconstrução de fatos históricos. Por sua autoridade política, elas alcançam um público amplo e formam com suas investigações e recomendações uma base importante e um ponto de contato para a apuração futura, o trabalho de memória no Brasil e o tratamento das violações de direitos humanos passadas e atuais. Porém, seu mandato é limitado temporal e tematicamente, e seus poderes frente à maioria dos militares responsáveis pelos crimes da ditadura fortemente restritos.

As questões abertas do relatório deixam claro que a verdade permanecerá oculta se não houver um trabalho mais intenso de políticos e da sociedade quanto aos arquivos militares. O governo pode instituir novas Comissões da Verdade que investiguem especialmente as violações de direitos humanos sobre determinados grupos da população, ou pode ampliar o mandato das comissões da verdade existentes. Mas, de qualquer forma, ele precisar dar ênfase política às exigências frente aos militares. A memória dos crimes deve se tornar parte da cultura da memória brasileira por meio de datas comemorativas nacionais, monumentos e planejamentos escolares para que possam surgir uma consciência coletiva e uma imagem história da injustiça do passado. Apenas dessa forma as novas gerações serão capazes de acompanhar e continuar os processo de apuração com confiança, identificar as violações passadas dos direitos humanos e impedir sua repetição.

A reação do governo da presidenta Dilma Rousseff ao relatório final tem sido até agora cautelosa. A própria presidenta Dilma, que também foi torturada como ex-membro da resistência, não expressou nenhum comentário concreto sobre recomendações da Comissão desde a cerimônia de entrega do relatório. Também não houve comentários sobre as declarações politicamente significativas constantes do documento, como a indicação nominal de 377 militares responsáveis por violações aos direitos humanos, o reconhecimento da necessidade de uma apuração jurídica ou a exigência de uma desmilitarização da polícia. Contudo, uma revisão ou reinterpretação da Lei da Anistia, que possibilitaria a responsabilização criminal dos violadores, bem como a reforma do aparato de segurança ou o fomento de uma cultura de memória nacional, podem apenas ser iniciadas e realizadas pelo Estado e/ou pelo Governo Federal. Os atores da sociedade civil e seus projetos, seu conhecimento e suas experiências devem influenciar nesse processo, mas não podem substituir o Estado nesse sentido.

Agora está nas mãos da opinião pública brasileira mobilizar-se para a continuação das apurações históricas e jurídicas e enfrentar os militares. Seria válido convencer o governo de que a verdade, a justiça e a memória são as chaves para uma sociedade pacífica e democrática, e não representam um perigo para a “conciliação nacional”, como os círculos conservadores gostam de espalhar — ao contrário: com os resultados e as recomendações da Comissão Nacional da Verdade, o Brasil está diante de uma oportunidade história de aprender com o passado e possibilitar uma verdadeira reconciliação de todas as brasileiras e de todos os brasileiros com esse passado.

*Sara Fremberg é historiadora e jornalista. Trabalha como porta-voz da Anistia Internacional na Alemanha. Durante um ano sabático em 2014, realizou pesquisas na região. Os resultados podem ser lidos em seu blog http://www.memoriaeverdade.com

(em português e alemão).

Tradução: Petê Rissatti

Publicado na série „PONTO DE DEBATE“ da fundação Rosa Luxemburg, setembro de 2015, n.01

[Der Text erschien im März 2015 in der Reihe Standpunkte der Rosa-Luxemburg-Stiftung.]

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